(Publicado na Revista Força Aérea, edição nº 30, 2003)

Por Armando de Souza Coelho
(Veterano do 1º GAvCa com 62 missões)

 Dentre os gaúchos do 1º Grupo de Caça na Itália havia um todo especial. Um tipo diferente, ímpar por suas atitudes e reações, completamente despido de maldade, até simplório na sua maneira de ser, sem inibições. Enfim, uma figura simpática, apesar de sua barba espessa, que azulava ao sol e parecia estar sempre por fazer. Embora muita gente não concorde comigo, era inteligente e vivo, mas recusava-se terminantemente a pensar durante muito ou mesmo pouco tempo, falando, por isso, de um modo todo peculiar, o que o tornou muito popular entre os fazedores de anedotas que, por sinal, foram muitas a seu respeito. Usava o dialeto gaúcho com perfeição e até mesmo exagerava, diziam muitos… Tudo isso, mais outras coisinhas, e finalmente a sua fuga – o que contrariou todas as regras do bom senso, especialmente as dos técnicos no assunto –, tornaram-no personagem muito mais importante, pois passou da anedota para a ópera.

Sim, uma ópera inédita aos estranhos ao Grupo, onde os poetas do 1º Grupo de Caça imortalizaram – para uso interno – os feitos daquele gaúcho de Cachoeira do Sul. É deste pração que me ocuparei nesta história, que a muitos parecerá uma anedota, mas que é pura verdade. Num dia de inverno, ensolarado mas bastante frio, com a neve ainda cobrindo o Norte da Itália, ele saiu para mais uma missão com sua esquadrilha. Estivemos juntos pouco antes, enquanto fazia os últimos preparativos para voar. Estava bonito, bem uniformizado, barbeado com um capricho até mesmo desnecessário, pois sua barba azulada ficaria oculta, de qualquer jeito, pela máscara de oxigênio. Ora! Afinal, ele era todo especial. Parecia pronto para ir ao encontro da buona sera. Vestiu sobre o fardamento caprichado, o macacão de voo forrado de tecido peludo e quente, próprio para grandes altitudes, começando a transpirar imediatamente, o que mais realçava o azul de sua barba. Aquela indumentária era realmente muito quente. Conversamos ainda um pouco. Partiu.

E nessa manhã… ele não regressou! Foi abatido muito ao Norte de nossa base. Ninguém soube exatamente o que acontecera. Ouviram-no dizer, pelo rádio, que ia saltar de paraquedas. Devido à missão – metralhamento de trens num entroncamento fortemente defendido –, devia ter saltado à baixa altura, o que não encorajava prognósticos muito otimistas acerca de sua “caveira”. Sentiu-se a falta do gaúcho, mas a guerra continuava, e se não tivesse sido ele seria um outro qualquer de nós. Não havia tempo para lamentações. Talvez por respeito, por sentimento, ou qualquer outro motivo, suas anedotas não eram mais contadas, mas lembradas com um cunho de saudades. Sua voz estridente não era mais ouvida na garagem, e penso mesmo que os praças que comandava sentiram a falta de suas ordens aparentemente gritadas, na maneira característica que todos gozavam. Ele não voltou naquela manhã de inverno. O que teria acontecido? Era a dúvida de todos.

Os dias se passaram e logo o pessoal se conformou, e a alegria foi até maior quando da sua volta, após sua fuga excepcional, que só ele mesmo conseguiria realizar com êxito. O Gaúcho foi abatido por armas automáticas muito distante de nossa base, Pisa. Aproximadamente uma distância equivalente entre as cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, ou talvez mais. Saltou à baixa altura e, como Deus também é gaúcho, chegou ao solo com felicidade, nada mais lhe acontecendo do que um corte na língua, que mais tarde lhe foi providencial. Depois da aterragem, ajudado por um camponês italiano nas críticas horas iniciais, deu início à sua evasão, percorrendo 341 km até sua chegada à Pisa na primeira semana de março de 1945.

Conta ele que, ao chegar ao chão -– o que aconteceu muito rápido, pois o paraquedas apenas se abriu, ele sentiu o tranco e logo em seguida tocou ao solo, mordendo a língua neste momento – ficou um pouco desorientado, sem saber qual atitude a tomar. Venceu a indecisão inicial. Colheu rápido o paraquedas e afastou-se do local da queda. O campo em que caíra estava coberto de neve. O trigo já havia sido colhido e sua palha estava empilhada, para servir de alimento ao gado durante o inverno. Encontrava-se em campo aberto sem saber o que fazer. Recordou-se, disse ele, das aulas do Inglês, dos macetes (Serviço Secreto) e, ainda sem saber o que fazer, ocultou-se no primeiro monte de palha, pois alguém se aproximava.

Era um italiano, camponês, aparentemente inofensivo. Entretanto, naquela situação, não podia confiar em ninguém. Tinha que ter certeza. O inglês havia ensinado assim. O homem do campo aproximou-se, e ele ficou na indecisão de pregar-lhe um tiro na cara ou conversar com o paisá. Decidiu-se pela última alternativa. Esperou. O italiano falou-lhe primeiro. Ainda desconfiado, e com muito medo, dispôs-se a ouvir o italiano, que na sua simplicidade, no isolamento em que vivia, nunca poderia imaginar o quanto esteve próximo de levar um tiro na cara. É necessário que se faça uma ressalva para louvar a coragem, o desprendimento desinteressado destes camponeses italianos, que, mesmo sem ignorar as consequências – os alemães não faziam mistério das represálias e castigos que infligiriam a todos que ajudassem os Aliados –, ofereciam a sua ajuda a estranhos, da mais nobre maneira, dentro de suas limitadas possibilidades. O nosso gaúcho estava frente a um destes heróis anônimos. Este lhe perguntou, na sua maneira simples e substancial: Inglês ou Americano? O Fabiano prontamente respondeu: Americano. O bom homem não entrou em pormenores. Escondeu-o mais ainda no monte de palha, cobrindo-o todo, dizendo-lhe que voltaria mais tarde.

Horas amargas deve ter passado o Índio, sozinho, debaixo daquela palha úmida, com frio e muito mais medo, sem sossego de espírito, aguardando o que viria depois, mas que imaginava ser o pior. Não teria sido melhor ter passado o recibo no italiano? Naquela solidão escura e umedecida do monte de palha a sua cabeça não o deixava em paz um só instante. Estava ficando desesperado, pensando que não mais suportaria a situação. Nessa luta íntima, o tempo foi passando e havia sempre uma esperança, a que, como bom jogador de pôquer – ele considerava todos os ângulos –, mantinha-o sempre com um restinho de moral. Foi justamente este restinho de moral que o fez suportar aquelas primeiras horas terríveis. A palha molhada o incomodava profundamente, porém o desconforto moral era muito maior. Se fosse outro, pensaria com raiva nas poesias que tanto falavam do odor úmido dos campos. Mas ele nunca tomou conhecimento da existência de poesias.

Com muito frio e medo, foi suportando a noite inteira, muito mais fria que quase todo o dia que passara naquele estado deplorável. Sentiu-se enregelado, o corpo começava a se ressentir da posição forçada debaixo da palha, mas tudo isso era bobagem – contou ele – comparado com o estado de ânimo de que se sentia possuído. Confessou que esteve próximo a entregar-se ao desespero, desistindo de uma vez. Nessa indecisão, aguentou valentemente a noite fria. O gaúcho era especial de verdade. Valente, simples, inconsciente de sua força moral, enfrentou tudo aquilo com uma galhardia inigualável, com uma naturalidade nata, só compreendida pelos que com ele privaram.

Ao contar a sua história, depois de sua volta, sentia-se que estava sendo sincero no seu relato, sem preocupações de se fazer herói. A madrugada encontrou-o entorpecido, sonolento, abatido pelo cansaço, porém não vencido. Como havia lhe prometido, o italiano voltou, trazendo-lhe comida. Alimentou-se como pôde, pois o apetite não podia ser grande. As primeiras 24 horas tinham passado e ele não havia sido descoberto. Se o Inglês sabia mesmo o que dizia, a sua possibilidade de fuga aumentara um pouco. Mais animado, convenceu o camponês de arranjar-lhe umas roupas civis em troca das suas. O pobre italiano, embora relutante, concordou, ficando com a sua roupa de voo. O gaúcho vestiu a roupa velha e surrada que conseguiu, conservando as calças de gabardine de lã do uniforme e as botinas, que pintou de preto, ainda com o auxílio do italiano. Ficou de posse de sua bolsa de fuga, com algum dinheiro italiano e com a bússola, os fósforos, os medicamentos especiais e os mapas da região estampados em seda. Distribuiu o que restou da bolsa de fuga pelos bolsos de sua nova roupa velha. Inadvertidamente conservou o seu relógio de pulso. Não pensou naquilo, só muito mais tarde notou que o conservava no pulso.

Agora, com boné velho na cabeça, com uma broa bem italiana amarrada em um lenço estampado em vermelho metido debaixo do braço, como o costume da terra, com a sua famosa barba azulada de um dia de idade, poderia passar bem por qualquer italiano da Calábria. O seu moreno carregado e o seu otimismo invulgar lhe davam esta pretensão. Metido nesta roupagem, começou a sua fuga original. Com a ajuda de seus mapas e muito mais com ajuda do italiano, orientou-se na região em que se encontrava. Voando, a coisa era muito mais fácil do que em terra, afirmou o gaúcho. Não havia nenhuma referência à mão… o Inglês do Army (Serviço Secreto) havia ensinado em suas aulas como deveria proceder em situações como a que se encontrava o nosso herói. Sim, devia seguir o caminho mais próximo de gente amiga, ou seguir para as montanhas, onde sabia existirem os partisanos, ou ainda procurar alcançar a fronteira suíça e ser internado. Isso seria naturalmente o mais lógico, dado a posição em que se encontrava em relação àquelas alternativas. Não se preocupou com estes detalhes sem importância. Ele era mesmo diferente.

A distância mais curta estava ao Norte. Não conversou. Meteu rumo Sul, que era o de Pisa, onde a gaita deveria sair no dia 28 de cada mês. Sim, tinha de chegar antes do pagamento, pois do contrário passaria a desaparecido, ou qualquer outra coisa burocrática, e seria o diabo para receber aquelas Liras. Conta ter sido esta sua maior preocupação. Acredito sinceramente que seja verdade. As reações do homem eram todas diferentes. Outro igual será muito difícil existir. Guiado pelo italiano, desembaraçou-se do reticulado das estradas secundárias, que não constavam no mapa de fuga, e, de bicicleta – o camponês levou-o no quadro – alcançou a estrada principal que o levaria a Padova. Diz ele que, comovido sinceramente, despediu-se do paisá, que lhe desejou muitos alguri e quis beijá-lo à moda da terra. Mas ele não consentiu. Homem, não! Para encurtar a despedida, prometeu-lhe que, terminada a guerra, voltaria para revê-lo. Queria ver o vestido feito de paraquedas que a irmã do contadine iria fazer, assim que os alemães saíssem da sua terra. Sou testemunha de que o gaúcho cumpriu sua palavra, voltando para ver o vestido de seda branca de seu paraquedas e que também deixou-se beijar à maneira daquele povo. Quando prometera que voltaria para rever o seu novo amigo, estava muito longe de pensar que isso realmente aconteceria. Entretanto, logo após o cessar-fogo, oficiais do Grupo que receberam ajuda de civis italianos, procuraram seus amigos para presenteá-los com alimentos e agradecer mais uma vez pela ajuda recebida.

Estava só, na estrada principal para Padova e durante o dia. Tudo ao contrário do que o Inglês lhe dissera para fazer. Um ótimo começo, sem dúvida… Isto não o preocupava em absoluto. Seria de quem tivesse as melhores cartas. Ele também era um bom jogador. Continuou caminhando para o Sul, sempre na estrada principal. Chegou a Padova. Cidade importante, entroncamento ferroviário e de estradas de rodagem que derivam para Vicenza, Mestre e Veneza. Devia evitá-la, contornando-a. O Inglês dizia que era assim. Mas ele não era da mesma opinião. Atravessou-a de ponta a ponta sem conhecer as ruas, na direção que julgou (e acertou) que o conduziria à saída da cidade, com destino ao Pó.

Encontrou muitos alemães em seu caminho pela cidade. Não se preocupou com eles e eles tampouco com a sua figura. Havia muita gente esquisita vagando pelas estradas e cidades italianas. Considerou-se um destes. Já estava mais seguro de seu papel de italiano sbagliato, rovinato, distrutto, malato e muitos outros adjetivos italianos que ele enrolava na sua história, mais enrolada ainda por sua língua ferida, mas que sempre lhe conseguia comida e lugar para dormir.

Parece que sem atropelos atravessou Padova. Veio descendo rumo ao Sul, sempre pela estrada principal. Sujo, mal alimentado, barbado, com a língua inchada na boca. Sua aparência era mesmo de um pobre italiano abandonando a cidade natal, em busca de outra em melhores condições, ou à procura de parentes que sempre dizia possuir. As estradas enchiam-se desses pobres coitados que, não mais podendo servir aos alemães em suas fábricas ou outros trabalhos, procuravam suas casas, encontrando-as às vezes, quando ainda não haviam sido bombardeadas ou ocupadas. O êxodo era constante em todas as direções. Entre eles ia o nosso gaúcho caminhando para sua base. O dia do pagamento se aproximava e, assim, tinha que andar mais depressa. Caminhando sempre, enfrentando situações delicadíssimas, privando com os estropiados das estradas, dormindo em estábulos mal cheirosos, mas que não o aborreciam muito, pois o máximo que poderia acontecer era ficar um pouco mais sujo, e o seu cheiro, também, há muito que não era o de rosas.

Sempre pela estrada principal, deixou para trás Monsélice, Stanghella, Rovigo (cidade fortemente defendida e vigiada, em virtude de ali existir uma fábrica de um gás qualquer, que era usado como combustível em motores a explosão), Arqua e Polesella, até que finalmente encontrou o rio Pó. De acordo com as declarações do próprio Índio, o Pó constituiu para ele o primeiro problema real, que, em princípio, lhe pareceu insolúvel. Com o inverno, o rio, ainda que não congelado, mantinha nas  margens uma crosta fina de gelo, que era indício seguro da baixa temperatura das águas. As pontes há muito tinham sido bombardeadas ou danificadas, a ponto de não poderem ser utilizadas. Mesmo que existissem, de nada adiantariam ao nosso homem, pois estariam controladas por sentinelas, que verificariam a documentação de identidade, o que o nosso gaúcho não possuía. Assim, alemães e italianos atravessavam o rio em balsas, identificando-se ao embarcarem. O problema pareceu-lhe sem solução. É, não havia mais jeito. Ali parecia ter sido inútil toda a caminhada do nosso companheiro. Grande parte da distância já havia sido vencida, e no raciocínio fácil do fugitivo só existia o rio, mais uns muitos quilômetros e uns montes, os Apeninos. Naquela situação, o gaúcho sentiu-se praticamente perdido, porém não se desesperou, confiando sempre na sua estrela, que não era pequena.

Chegou até a margem do rio, avaliou a embrulhada em que se metera e resolveu não se precipitar. Subiu no barranco que marginava o Pó, observou o movimento, inteirou-se das balsas que cruzavam o rio e das sentinelas nos pontos de embarque. Ficou meio confuso. Sentou-se para melhor decidir o que fazer e para descansar, pois já caminhava com grande sacrifício havia alguns dias, em virtude de estar com os dois joelhos inchados pelo esforço de suas marchas. Uma das sentinelas, vendo-o ali sentado, disse-lhe alguma coisa em alemão. Não respondeu, não só por não haver entendido, como também por precaução. O soldado não deu importância ao fato.  Considerou-o mais um italiano sem ocupação, um dos muitos que percorriam as estradas. Vendo-se notado, o nosso gaúcho achou melhor descer o barranco e voltar à estrada que marginava o rio. Uma vez na estrada, procurou um lugar afastado no campo, para poder melhor descansar e tomar uma iniciativa. Encontrou.

Deitou-se no capim entregando-se à resolução do problema. Contrariando os seus hábitos, pensou longamente. Era isso mesmo: compraria um cavalo e como bom  gaúcho atravessaria o rio agarrado ao animal. Animou-se um pouco. Teria que tentar o golpe à noite. Mas e depois? A água estava fria. Se tivesse êxito e se não congelasse na água, teria que esperar sua roupa secar, pois do contrário notariam que estava molhado, acarretando suspeitas. E explicações não poderia dar... Não. Não poderia cruzar o Pó daquela maneira gaúcha. Tinha que achar outro modo para resolver a questão.

O dia já ia a meio e sentiu fome. Levantou-se e começou a seguir a estrada marginal em direção a Oeste. Na primeira casa de camponeses que encontrou, pediu água e comida, contando a história de sempre, em mal italiano, atrapalhado por sua língua ferida. Com muito boa vontade, eles procuravam entendê-lo, considerando a infinidade de dialetos existentes, muitos dos quais grande parte dos nativos desconheciam. Talvez por esta razão, ou comovidos pelo estado lastimável do nosso patrício, aceitavam a história sem restrições. O nosso homem seguia mais ou menos a mesma sequência na sua aproximação: primeiro escolhia pela pinta o paisá com menos aparência de fascista ou germânico, e então entrava com o enredo. — Buona sera, paisá! Aguardava a resposta do italiano. Se era bem acolhido, o que geralmente acontecia, pois aquela boa gente raramente negava um cumprimento, continuava com a conversa. Se não, prosseguia o seu caminho. Na primeira hipótese entrava com a história. — Por favor, um copo d’água. Aquela gente raramente usava este líquido, a menos que fosse para tomar banho. Davam-lhe sempre um copo de vinho, que algumas vezes (quando o estômago estava muito vazio) fazia com que exagerasse no seu papel de italiano, como em uma das vezes em que, depois de beber o vinho, resolveu fazer a barba em uma barbearia da vila.

Entrou. Encontrou alguns oficiais subalternos alemães, que também aguardavam a vez de serem barbeados. Esperou a sua, fez a barba, assustando-se muito mais tarde com o que fizera. Depois, naturalmente, que o efeito do vinho passou... Voltando à história da “aproximação”: o gaúcho pedia a seguir um pouco de pão. Contava que a sua casa havia sido bombardeada pelos ingleses – para aqueles camponeses todos os aviões ou outra coisa que bombardeasse eram ingleses. Ignoravam, na maioria das vezes, a existência de outras forças aliadas na Itália, o que a propaganda inglesa em muito contribuía, sem considerar o formidável serviço “subterrâneo” inglês por trás das linhas alemães – que ele era um pobre diabo, arruinado, perdido naquele caos de guerra, mostrava a língua machucada, o que muito comovia aqueles bons camponeses. Os seus documentos haviam sido perdidos no incêndio de sua casa, e agora ia para Bolonha onde tinha parentes (a cidade onde tinha parentes movia-se constantemente para o Sul). Ao terminar a sua história, geralmente já tinha pousada para a noite quase garantida. Mais uma vez nessa manhã, às margens do Pó, conseguiu o almoço, tomou uns copos de vinho de fabricação doméstica, fruto da tradicional hospitalidade campesina, e, confortado com a refeição, prosseguiu o seu caminho.

Ainda não tinha achado um meio de atravessar o Pó. Conta ele, muito ingenuamente, que teve o seguinte raciocínio, que mais parece anedota, mas que é fato. Resolveu seguir aquela margem do rio, sempre pelo lado Norte e sempre para Oeste, rumo à nascente do rio, onde naturalmente ele seria muito mais estreito, e então atravessá-lo seria facílimo. Talvez com um pulinho... O Pó nascia quase na França... Para ele isso tudo eram “pequenos detalhes técnicos”... Com este propósito, foi caminhando para a “nascente”... Caminhou um bom pedaço naquela direção. Os seus joelhos doíam. A distância começou a parecer maior. Sentiu-se cansado e a “nascente” não aparecia... O dia terminava. O almoço não tinha sido grande coisa, o estômago reclamava, o frio parecia aumentar. No dia seguinte começaria mais cedo.

Havia uma aldeia próxima, e ele seguiu naquela direção. Na terceira casa à beira da estrada, estava um italiano, igual a milhares de outros, rachando lenha. Rachava a sua lenha e ato contínuo empilhava ao seu lado. O “Índio”, cansadíssimo, caminhara todo o dia, com a moral abatida, desanimado, sentou-se ao lado do monte de lenha rachada, a observar o italiano por longo tempo. O machado subia e descia compassadamente e os pedaços de lenha iam sendo jogados para a pilha ao lado. Aquele mister doméstico fê-lo recordar os seus, lá no Rio Grande do Sul, que cada vez mais tinha dúvida se iria rever, mas que ao mesmo tempo davam-lhe forças para lutar contra aqueles obstáculos. Além disso, o dia do pagamento aproximava-se... Tinha de chegar a tempo. Os minutos se passaram. Nenhum dos dois disse uma palavra. O machado subia e descia sobre a lenha e as achas aumentavam o monte.

Por fim, o italiano perguntou-lhe o que queria. Entrou com a velha história de bombardeado, arruinado, etc. e terminou pedindo-lhe um copo d’água, comida e pousada. O lenhador ouviu tudo com a máxima atenção, deu-lhe vinho, comida e água e agasalhou-o em sua casa. O nosso homem procurava responder o menos possível e o paisá não insistia cordatamente. À noite brilharam as estrelas no belo céu de uma noite de inverno italiano, e com muito mais intensidade brilhou a grande estrela do nosso rio-grandense, na pessoa daquele camponês acolhedor. Chamando-o, o italiano disse-lhe simplesmente que acreditaria na sua história, se não fossem as suas botinas... O gaúcho sentiu-se perdido: fora descoberto! Breve seria entregue aos alemães, foi o que pensou naquele instante desanimador. O italiano então desfez-lhe as dúvidas. Estava em boas mãos. Nada tinha a temer. Abriu o jogo – disse o gaúcho. Naquele homem ignorado, com sua função de pedreiro de aldeia pobre, residia mais um dos muitos heróis anônimos daquela guerra. Contou-lhe então, o Índio, toda a sua história desde a sua queda. O pedreiro tranquilizou-o, dizendo-lhe que fosse dormir. Pela primeira vez, em muitos dias, teve uma cama com lençóis e colchão macio e reconfortador.

Na manhã seguinte tratariam do seu caso. Acordou já bastante tarde naquela manhã. O corpo doído e cansado bem que merecia um “abuso” daquela cama confortável, depois de tantos dias dormindo na palha fria das cocheiras. A cama era até melhor do que as que usava em Pisa. Ainda “cansado” de dormir bem, levantou-se desacostumado e tonto. Desceu, encontrando-se pela primeira vez com a família do italiano, que não o vira chegar. Nada lhe disseram, parecendo que a sua presença ali era a coisa mais natural do mundo. Fora promovido a fratello que chegara do Norte. O seu protetor saíra para o trabalho cedo. Deram-lhe de comer e não permitiram que os ajudasse em coisa alguma. À noite o italiano voltou do trabalho, dizendo-lhe que estava cuidando do seu problema, que tivesse paciência que tudo sairia bem. Andara sondando a melhor maneira de conseguir a sua travessia, confiando-lhe ainda, à guisa de consolo, que não era a primeira vez que fazia aquela “mágica”. Naquela casa já haviam estado outros em situações idênticas à sua.

Mesmo muito depois de acabada a guerra, o gaúcho não conseguira compreender bem o italiano. O camponês nunca deixou transparecer se fazia aquilo por parte de alguma organização especializada, ou se fazia tudo por simples altruísmo. O homenzinho não parecia de modo algum agente na retaguarda alemã, dada a sua simplicidade natural de agir, lutando com todas as dificuldades comuns aos italianos, vivendo do produto de sua horta no campo de sua casa, comendo o macarrão que sua mulher fazia com a escassa farinha que conseguia. Ou o homem era um agente, um perfeito artista na sua perigosa missão, ou então um abnegado samaritano que enfrentava o risco com toda a família com uma coragem indescritível. Em resumo, de maneira ou de outra, o pedreiro era um homem de grande valor na sua existência heroica e ignorada. O nosso colega ficou com este herói durante uma semana, recuperando-se para enfrentar o resto da jornada. Finalmente foi informado de que atravessaria o rio naquela tarde, na hora em que os  trabalhadores que voltavam às suas casas na outra margem do Pó costumavam fazer a travessia. Era a ocasião mais propícia.

Vestiu a sua roupa velha, muniu-se de uma nova broa debaixo do braço, despediu-se de todos e foi com o italiano até o ponto de embarque. O italiano dera-lhe uma bicicleta velha e enferrujada, que necessitava urgentemente de lubrificação. Uma máquina bem antiga. Chegaram à prancha de embarque e sem dificuldade tomaram lugar na balsa. O pessoal da fiscalização já estava industriado pelo italiano. Com umas garrafas de grappa ou conhaque, tudo se conseguia daqueles alemães já cansados de tanta guerra. Por precaução, durante a travessia, o italiano fez com que as botinas do nosso patrício ficassem escondidas debaixo da bicicleta e do seu casaco, para não despertar a atenção dos outros italianos. Em pouco tempo estavam na outra margem.

Caminharam juntos até o primeiro povoado. Ali tiveram que se separar e cada qual seguiria o seu caminho. O incompreensível italiano fizera o que estivera ao seu alcance, ou quem sabe cumprira a sua missão, e eu não ficaria admirado se algum dia viesse a saber que aquele rústico pedreiro era um coronel ou outra patente qualquer do serviço secreto. Nunca chegamos a saber ao certo. Deixou o gaúcho. Ele nada mais poderia fazer. Dali em diante o nosso patrício estava entregue novamente à sua sorte, que não era pequena. Estava só outra vez. Montou na bicicleta e começou a pedalar na estrada principal para Ferrara. O rio ficou para trás. Menos um obstáculo. Pedalou algumas horas, e em breve seus músculos se ressentiram com o exercício, entrando em pane novamente. Parou para descansar à beira da estrada. Sentindo-se melhor, voltou ao caminho. Pedalando e empurrando a velha máquina foi em direção a Ferrara. Estava bem mais próximo do front e o movimento de soldados-sentinelas alemães era bem mais intenso.

Dispôs-se a redobrar o seu esforço, descansando o mínimo possível. Cada quilômetro que andava custava-lhe enorme sacrifício e sustos maiores. A cada momento esperava ser descoberto, mas conservando a sua velha maneira de pensar, ia descendo para o sul enquanto não o prendiam. Se o prendessem e nada acontecesse, provavelmente seria transportado para um campo de concentração muito ao Norte e, a priori, já pensava em escapar, mas a possibilidade de ser preso o desgostava profundamente, porque teria de voltar a fazer o mesmo passeio. Ora, um homem com este espírito merecia o êxito que obteve. O Tenente Danilo Marques Moura!

Foi caminhando com sua bicicleta, e, contra todas as expectativas, conseguiu novamente atravessar uma cidade, Ferrara, quartel-general alemão, sem que nada lhe acontecesse. Uma vez achou-se na estrada principal rumo a Bolonha, que na época ainda se encontrava relativamente afastada do front, porém não muito longe. Bolonha era a última cidade importante e grande do seu itinerário de fuga. Começava a perder as esperanças de encontrar os homens da organização de fuga que o inglês mencionava nas aulas. Até então, tudo o que conseguira fora com o seu próprio esforço excepcional. Adotando os mesmos processos truncados que usara desde a sua queda, alcançou aquela cidade. Mas nada de ser encontrado, quer pelos alemães, quer pelos tais da organização. Vagou pela cidade uns dias e, nada conseguindo, resolveu que ali nada arranjaria, e que o melhor seria seguir o seu caminho.

Deixou Bolonha, então. Não era mais possível continuar andando para a frente de combate, pois as estradas eram intensamente vigiadas e havia fiscalização constante de documentos das pessoas que transitavam nas proximidades. Sua única alternativa, então, era derivar para Oeste. Foi o que fez. Com sua bicicleta, tomou aquela direção. Na estrada, cansado, ia pedalando a pesada máquina quando por ele passou uma carroça muito bem tirada por dois animais. Recordando dos seus tempos de garoto, e, também porque o cansaço era grande, conseguiu, pedalando com mais vigor, alcançar a carroça e deixar-se rebocar, a ela agarrado pelo braço esquerdo. A coisa assim era muito mais fácil e a bicicleta já não era tão pesada. O dono da viatura não se opôs, absolutamente, à sua presença de carona.

Tudo ia às mil maravilhas, e se continuasse assim alcançaria o dia de pagamento que já estava próximo. Ao trote dos cavalos, aconteceu de a carroça ultrapassar um soldado alemão, que também de bicicleta seguia para a mesma direção. O soldado, ao ver o gaúcho pendurado do lado oposto da carroça, achou que a ideia não era má. Pisou com mais força a sua máquina, alcançou-os, também tomou a sua carona do outro lado. O alemão, do lado direito; e o brasileiro, do esquerdo. Não trocaram nenhuma palavra e continuaram agarrados ao reboque por muito tempo. O nosso homem admite não ter gostado muito da companhia inesperada, e ter ficado um pouco sobressaltado com o fuzil que o soldado usava à bandoleira. A companhia era desagradável, mas nada podia fazer. Não se dando por achado, não largou do reboque. Já se conformara com a presença indesejável do novo carona, e de vez em quando arriscava olhar para ele. Numa dessas vezes, na última, viu uma coisa que constituiu razão essencial para que deixasse imediatamente de gozar as vantagens do reboque. A manga do seu casaco subira com a posição do seu braço que agarrava a carroça, deixando a descoberto o seu relógio, que, pela primeira vez notava que o conservava no pulso. Sentiu-se gelado. Se o alemão o visse, estaria perdido. Também não poderia abandonar de repente o seu lugar no meio de uma estrada em campo aberto. A sua sorte era mesmo muito grande. Naquele impasse, eis que surge um cruzamento providencial. Seria ali que abandonaria a carroça.

Chegando ao cruzamento, largou do reboque dobrando à sua direita, da maneira mais natural possível, como se ali fosse realmente o lugar a que se destinava. Ousadamente ainda se deu ao exagero de gritar um “Grazzie” ao carroceiro que lhe respondeu com um “Prego” (não há de que). Por algum tempo pedalou pela estrada secundária, que desconhecia, e quando achou que era suficiente, e fora de vista da carroça, voltou à estrada anterior, que era a principal, sua velha conhecida dos ares.

Naquela noite dormiu ao relento, não conseguindo alimento algum, porque a noite o alcançou no descampado. Não conseguira chegar a nenhum povoado nem casa de campo. Mesmo que tivesse conseguido encontrar alguma casa isolada por aquelas paragens, confessa que não se sentia muito animado a cruzar aqueles campos que, por estarem próximos à frente de combate, poderiam já estar minados. Ficou mesmo à margem da estrada, onde pretendia dormir sossegado. Tudo ilusão. Aproveitando o escuro da noite, os alemães enchiam a estrada com suas viaturas em comboios barulhentos, que, com as luzes apagadas, movimentavam-se vagarosamente. Pela primeira vez, o gaúcho testemunhou o valor da camuflagem dos inimigos. Assim que a luz do dia começava a apontar, todos aqueles caminhões desapareciam como que por encanto, nas cocheiras das fazendas ou debaixo de redes de camuflagem muito bem dispostas. Rezou para que aparecesse um Beaufort inglês para fazer uma faxina naquela estrada. Nada aconteceu, e passou a noite sobressaltado com o movimento dos barulhentos caminhões a diesel alemães.

Amanheceu. Estremunhado com a noite mal dormida, com fome, tomou seu rumo, que até aquele momento ignorava qual seria. Alcançou uma aldeia. Nela esperou, vagando quase todo o dia, e não foi encontrado. Achou os métodos ingleses bem falhos. Não eram tão bons assim. Se ele tivesse ao menos os endereços dos homens, ser encontrado seria muito mais fácil… O abacaxi era que eles não diziam e nem mesmo se conheciam. Ele tinha que esperar ser encontrado. Não o foi naquele dia, e nem muito menos no outro. Decididamente, ele tinha que resolver, por si, o problema. Deixou aquela estrada principal e derivou rumo à frente de combate, ao encontro dos Apeninos. Chegou à tardinha a uma pequena cidade que não conhecia e nem tinha tempo para ver qual seria nos seus mapas de fuga.

Com o estômago muito vazio, deu diversas voltas pela cidadezinha, e nada conseguiu. Ninguém o achava. Estava ficando desanimado, e com muita vontade de desistir, mas, ao mesmo tempo, sem coragem bastante para tal. Seria submetido a um interrogatório tremendo por parte do serviço de inteligência alemão e, se falasse, muita gente seria envolvida. Seria um desastre completo. Sua fome aumentava muito. Já não sabia ao certo o que fazer. Nessa condição de quase desespero, avistou uma senhora num segundo andar de um daqueles sobrados altos, muito comuns na Itália. A senhora fazia tricô tranquilamente na sacada do sobrado. Nada indicava que ela o ajudaria. A casa era tecnicamente muito grã-fina para partisanos. O inglês frisara bem que era muito mais provável encontrar quem o ajudasse entre as pessoas mais simples, que, regra geral, constituía a maior parte dos partisanos ou da resistência. Mesmo que não o fossem, eram fascistas por necessidade, para se manterem nos seus empregos de acordo com a política da terra, e, muitas vezes, eram pessoas contrárias ao regime que vigorava na época.

Pela pinta, aquela senhora nada tinha de partisan, muito pelo contrário, sua casa era das melhores da cidade, tudo indicando que era do outro lado. Mas a fome do gaúcho era maior do que a lógica e do que as razões do inglês. O esfomeado olhou longamente para aquela senhora que, domesticamente, fazia o seu trabalho de agulhas. Talvez uma dor mais aguda no seu estômago vazio tenha feito com que decidisse pedir-lhe o que comer. Levantou a pesada bicicleta ao ombro e subiu os dois compridos lances de escada que o levariam ao segundo andar. A porta da moradia na qual pretendia bater já estava aberta, e nela a senhora, numa expectativa que ele não podia compreender, como que a sua espera.

Desconfiado, no seu trôpego italiano um tanto brasileiro, parte GI (pouco instruído), e ainda conseguido com as primeiras vassouradas em Roma, dirigiu-se a ela com o mesmo refrão das vezes anteriores. Bem ou mal, ela conseguiu compreendê-lo, confessando-lhe mais tarde, que o italiano dele tinha sido o melhor que ouvira até então, da parte de “quem” a procurava. Ouviu toda a sua história cortesmente. Deu-lhe para comer o macarrão habitual e um colchão de palha que era tudo o podia oferecer, mas que era muito mais do que o gaúcho esperava. Disse-lhe a senhora que poderia ficar ali até o dia seguinte, e que à noite seu sobrinho chegaria do trabalho, não devendo se preocupar, mas não entrou em detalhes. Enfim, o Índio nada mais esperava do que comida e dormida, em segundo plano. Sentia-se capaz de passar mais outras noites ao relento frio do inverno. Sua caveira, mesmo não sendo do tipo muito recente, ainda satisfazia amplamente. No seu colchão de palha dormiu profundamente. Estava muito cansado para pensar, até mesmo para desconfiar daquela acolhida inesperada.

Na manhã seguinte foi acordado pelos seus novos protetores: a senhora e seu sobrinho. O rapaz queria ouvir sua história mais outra vez. Repetiu toda a sua lenga-lenga, agora muito mais bem ensaiada, que a ele já parecia muito boa e que a sua língua mal cicatrizada muito cooperava. O sobrinho da boa senhora que o acolhera não interrompeu a narração. Ofereceu-lhe até mesmo um cigarro, daqueles lambidos, com uma dose de fumo suficiente para matar um cavalo, mas que o jovem italiano tirava enormes tragadas sem esforço, com prazer, e que ele, o gaúcho, apesar de não ver um cigarro há muito, não conseguia aspirar nem um pouquinho. Fumou como lhe foi possível.

Ao terminar a sua conversa, o seu novo amigo, polidamente, vagarosamente, para que melhor o entendesse, disse-lhe que esquecesse tudo aquilo. De agora em diante, não precisaria contar mais aquela história. Uma vez mais, aquelas excelentes botinas americanas o traíram, para sorte sua. Finalmente tinha sido encontrado. Encontrado! Mesmo sem o admitirem, aqueles dois italianos o encontraram. Ficou decidido que ele permaneceria com os dois até o dia seguinte, quando o levariam à casa de uns outros “primos”, que eram partisanos. Ali sempre o próximo é que era partisan.

Na sua segunda e última noite na companhia daqueles parentes italianos, para encobrir e explicar a sua presença naquela casa, houve uma reunião a que compareceram os vizinhos para festejarem a chegada e a passagem do sobrinho que tivera a casa destruída por bombardeio em Ferrara, e que, em consequência ficara mudo. Comeu-se muita castanha assada e bebeu-se muito vinho tinto na festa em sua honra. Ficou bêbado, recolhendo-se ao seu colchão. Sua retirada foi desculpada e compreendida pelos presentes, que concordavam penalizados com o que lhe acontecera.

Ao amanhecer, estava ainda azedo de tanto vinho, mesmo assim seguiram de bicicletas ao encontro dos primos, que eram partisans. Assim, o nosso colega foi entregue aos cuidados da organização que tanto ouvira falar, e que estava ficando descrente que existisse. O italiano deixou-o nas mãos daquela gente especializada, voltando ao seu ponto de atividade, onde sua tia voltara a fazer o tricô que, pela sua função, devia ter sido o mais comprido da guerra. A organização, como todos já devem ter compreendido, compunha-se de pessoal altamente especializado, que conversava estritamente o essencial e fazia muitas perguntas, e, para segurança de seu trabalho, não devia cometer enganos. Tomaram todas as informações necessárias, confirmaram as datas, ouviram toda a história, desde a sua queda, quiseram saber os mínimos detalhes, o que contrariava muito o nosso herói, que na ânsia de atravessar a linha de combate julgava os homens exageradamente enrolados. Já lhes mostrara a sua chapa de identificação que consigo conservara, já lhes dissera quem era, de onde viera, o que voara, qual o objetivo naquela manhã em que fora abatido, enfim tudo o que realmente acontecera. Ingenuamente, sem avaliar o que conseguira realizar, não podia entender o porquê de tantas perguntas e confirmações. Para ele a sua aventura tinha sido perfeitamente realizável, mas os homens da “organização” estavam meio descrentes, naturalmente por ele ter contrariado basicamente, nos mínimos detalhes, tudo que a boa técnica aconselhava em matéria de fuga. Os seus interrogadores estavam admirados com os processos utilizados pelo gaúcho. Para os ingleses, nada daquilo poderia ter acontecido. O manual dizia justamente o contrário… Após muitas consultas e investigações pelos canais competentes, que não sabemos quais poderiam ser, o gaúcho foi dado como legítimo, dissipando-se as dúvidas.

Nessa mesma noite foi transportado para outra estação de espera, bem mais avançada para o front, onde outros em igual situação já o aguardavam. Havia americanos, ingleses, italianos e agora um brasileiro. O único que a organização conhecera até então. Eram oito ao todo. Aguardavam refazerem-se fisicamente para a próxima mudança de estação, que seria gradativamente mais avançada. Em deslocamentos sucessivos, feitos à noite, moveram-se para a última estação, na fralda da cordilheira. Por alguns dias, aí permaneceram esperando uma ocasião propícia, que ignoravam qual seria. Eles nunca lhes diziam coisa alguma, para fins de segurança. A ocasião esperada, propícia, chegou numa noite de violenta nevasca e frio cortante. Era a neve que aqueles homens incompreensíveis esperavam.

Os guias italianos chegaram, formaram o grupo, misturando-os com algumas famílias italianas, que, tudo indicava, se prestavam àquelas aventuras em troca de remuneração, não sendo a primeira vez que o faziam, pois não demonstravam preocupação alguma. Com duas pílulas contra cansaço – em outras palavras, dopados – iniciaram a caminhada sem paradas. Em ritmo contínuo, galgaram os Apeninos por trilhas de cabras, íngremes, sempre em fila indiana. As quedas e escorregões eram frequentes, mas não poderiam parar. Assim, no rigor de uma nevasca intensa, quando as sentinelas, premidas pelo frio, relaxaram a vigilância, conseguiram cruzar aqueles picos escorregadios, gastando 14 horas de caminhada sem descanso.

Ao romper do dia seguinte, seus esforços foram coroados de êxito. Na mesma manhã, descansavam na frente aliada, entregues ao Serviço de Inteligência Inglês, agora em uniforme. Foram separados, então. Não mais encontrou os americanos, nem os ingleses que, com ele, atravessaram as montanhas. Descansado, lavado, barbeado, bem alimentado, foi interrogado longamente pelos oficiais ingleses, que anotaram todas as informações fornecidas pelo nosso herói, posteriormente consideradas como as mais completas trazidas por um fugitivo naquela frente. Quanto à sua história, foi ouvida com muito interesse por ser ímpar naquele departamento, mas nunca poderia ser utilizada para fins de ensinamentos futuros por outros, por constituir uma quebra geral, quase absurda, de tudo aquilo que eles ministravam, baseados em estudos e estatística.

Acabado o longo interrogatório, o gaúcho, muito aborrecido com os dois dias que passara em companhia dos interrogadores ingleses, foi devolvido ao nosso convívio em Pisa, numa tarde fria, como qualquer outra naquele hotel esburacado em que vivíamos. Celebrou-se a sua volta, esvaziando-se o que restava de nossas rações de uísque, logo substituídas pelo horrível conhaque italiano, que fez o mesmo efeito. Em meio a forte ressaca, encerrou-se o capítulo mais heroico do 1º Grupo de Caça, realizado por aquele gaúcho simples, que, sem pretensões, tornou-se merecedor de toda a admiração dos comandantes aliados que o conheceram, de seus colegas e de seus poetas e fazedores de anedotas: O Tenente Danilo Marques Moura!